A hipótese do espectador II
A conferência de Augusto M. Seabra, intitulada A hipótese do espectador, foi agradável em diferentes planos. A sala era muito confortável, atapetada a vermelho, forrada a madeiras, com aquecimento central e cadeiras de encosto inclinável. Os espectadores eram extremamente civilizados, excepção feita ao que deixou tocar o telemóvel durante mais de um minuto. Seabra, além de simpático, simples e despretensioso, deu provas de já ter lido pilhas de livros sobre cinema. Leu-nos algumas passagens de ensaios muito sugestivas, algumas delas quase mesmo comoventes.
Porém, a conferência foi um falhanço total no que diz respeito à possibilidade do espectador. O conferencista defende que a característica que diferencia o cinema das restantes artes é a de o filme não existir senão na relação com o espectador. Exemplificou, o filme só é filme quando está ser visto por um espectador, nem que a sala esteja vazia e único espectador seja o projeccionista. Continuou a exemplificar. As obras de arte do Louvre continuam a ser obras de arte mesmo à noite, depois de todos os visitantes terem abandonado o local, mesmo depois de terem deixado de ser vistas, o que não acontece com os metros de película encerrados dentro de uma lata.
O falhanço reside no facto de Augusto M. Seabra atribuir como característica específica do cinema, uma característica que é comum a todas as restantes formas de arte. O filme para ser filme depende da relação ao espectador. Porém, todas as obras de arte dependem também da relação que têm ao sujeito de percepção. Uma escultura quando não é vista ou tocada é um monte de pedra. Uma pintura quando não é vista é uma superfície coberta de traços e manchas de cor. Um livro quando não está a ser lido é, para usar a expressão de Pessoa, um maço de papéis pintados com tinta.
Mas a extensão do erro não se ficou por aqui. Augusto M. Seabra não se limitou a atribuir uma característica comum a todas as formas de arte como sendo uma determinação específica do cinema. Atribuiu, enquanto determinação específica do cinema, uma determinação comum, não só às artes, mas também a toda a experiência possível (possivelmente até à própria experiência que o intelecto tem de si mesmo − se se verificar que tal experiência é mediada pela imaginação e, por conseguinte, com recurso à própria percepção). A experiência do cinema, das diferentes artes, mas também das mesas, das cadeiras, das batatas, do arroz, das pedras e do próprio pó, só são possíveis por relação a qualquer ponto de percepção, seja ele de natureza visual, auditivo ou táctil.
A condição de possibilidade da experiência, seja ela qual for, seja ela de que natureza for, reside na relação entre uma forma de percepção e um objecto percepcionado. De outro modo não há experiência. Augusto M. Seabra determinou como sendo a diferença específica do cinema uma característica comum a toda a experiência possível, isto é, à experiência de todas as coisas que vemos, ouvimos ou saboreamos.
Quando confrontado com esta objecção − ainda que expressa noutros termos − por uma pessoa presente, que timida e paradoxalmente defendeu que nesta fragilidade residia a força da argumentação, Seabra acabou por se afundar em definitivo. Foi doloroso de ver e perceber que qualquer um podia estar num lugar semelhante. Seabra defendeu-se falando de Beethoven, o músico que ficou surdo. Mas poderia ter continuado com a indicação de que há um crítico de cinema cego e que João César Monteiro, em Branca de Neve (2000), foi um filantropo humanista de tão ou mais elevado grau do que o Sporting quando decidiu oferecer bilhetes no novo estádio de futebol aos cegos.
Aquilo que Seabra saiu da conferência sem perceber é que não é dado à constituição física dos cegos ver filmes, nem é dado aos surdos ouvir música. A visão sem o visível é cega e o visível sem a visão é invisível. Cada um deles é a condição de possibilidade do outro. Um filme é filme em função do espectador, mas também o mundo e todas as coisas nele contidas são o que são em função da relação com o espectador que - entendido aqui em sentido lato e sendo em cada caso cada um de nós - o apreende. Tendo em conta que a definição das coisas é feita entre o género próximo e a diferença específica, Seabra falhou porque ao definir o cinema na sua especificidade como uma realidade dependente da possibilidade do espectador não fez uma definição, limitou-se a indicar como característica específica uma característica que é comum e não é uma característica ou um género comum apenas um conjunto determinado e bem circunscrito de coisas, mas sim uma característica comum a todas as coisas, a condição de possibilidade de todas as coisas, um género de extrema generalidade, uma categoria maximamente englobante.
Porém, a conferência foi um falhanço total no que diz respeito à possibilidade do espectador. O conferencista defende que a característica que diferencia o cinema das restantes artes é a de o filme não existir senão na relação com o espectador. Exemplificou, o filme só é filme quando está ser visto por um espectador, nem que a sala esteja vazia e único espectador seja o projeccionista. Continuou a exemplificar. As obras de arte do Louvre continuam a ser obras de arte mesmo à noite, depois de todos os visitantes terem abandonado o local, mesmo depois de terem deixado de ser vistas, o que não acontece com os metros de película encerrados dentro de uma lata.
O falhanço reside no facto de Augusto M. Seabra atribuir como característica específica do cinema, uma característica que é comum a todas as restantes formas de arte. O filme para ser filme depende da relação ao espectador. Porém, todas as obras de arte dependem também da relação que têm ao sujeito de percepção. Uma escultura quando não é vista ou tocada é um monte de pedra. Uma pintura quando não é vista é uma superfície coberta de traços e manchas de cor. Um livro quando não está a ser lido é, para usar a expressão de Pessoa, um maço de papéis pintados com tinta.
Mas a extensão do erro não se ficou por aqui. Augusto M. Seabra não se limitou a atribuir uma característica comum a todas as formas de arte como sendo uma determinação específica do cinema. Atribuiu, enquanto determinação específica do cinema, uma determinação comum, não só às artes, mas também a toda a experiência possível (possivelmente até à própria experiência que o intelecto tem de si mesmo − se se verificar que tal experiência é mediada pela imaginação e, por conseguinte, com recurso à própria percepção). A experiência do cinema, das diferentes artes, mas também das mesas, das cadeiras, das batatas, do arroz, das pedras e do próprio pó, só são possíveis por relação a qualquer ponto de percepção, seja ele de natureza visual, auditivo ou táctil.
A condição de possibilidade da experiência, seja ela qual for, seja ela de que natureza for, reside na relação entre uma forma de percepção e um objecto percepcionado. De outro modo não há experiência. Augusto M. Seabra determinou como sendo a diferença específica do cinema uma característica comum a toda a experiência possível, isto é, à experiência de todas as coisas que vemos, ouvimos ou saboreamos.
Quando confrontado com esta objecção − ainda que expressa noutros termos − por uma pessoa presente, que timida e paradoxalmente defendeu que nesta fragilidade residia a força da argumentação, Seabra acabou por se afundar em definitivo. Foi doloroso de ver e perceber que qualquer um podia estar num lugar semelhante. Seabra defendeu-se falando de Beethoven, o músico que ficou surdo. Mas poderia ter continuado com a indicação de que há um crítico de cinema cego e que João César Monteiro, em Branca de Neve (2000), foi um filantropo humanista de tão ou mais elevado grau do que o Sporting quando decidiu oferecer bilhetes no novo estádio de futebol aos cegos.
Aquilo que Seabra saiu da conferência sem perceber é que não é dado à constituição física dos cegos ver filmes, nem é dado aos surdos ouvir música. A visão sem o visível é cega e o visível sem a visão é invisível. Cada um deles é a condição de possibilidade do outro. Um filme é filme em função do espectador, mas também o mundo e todas as coisas nele contidas são o que são em função da relação com o espectador que - entendido aqui em sentido lato e sendo em cada caso cada um de nós - o apreende. Tendo em conta que a definição das coisas é feita entre o género próximo e a diferença específica, Seabra falhou porque ao definir o cinema na sua especificidade como uma realidade dependente da possibilidade do espectador não fez uma definição, limitou-se a indicar como característica específica uma característica que é comum e não é uma característica ou um género comum apenas um conjunto determinado e bem circunscrito de coisas, mas sim uma característica comum a todas as coisas, a condição de possibilidade de todas as coisas, um género de extrema generalidade, uma categoria maximamente englobante.
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