sábado, fevereiro 11, 2006

Marcha da Bica 2006

Ao longo dos últimos anos a minha forma de ver as marchas de S. António modificou-se muito.
Sendo de Válega, o S. António de Lisboa era uma coisa a que apenas assistia na televisão. Quando vim viver para Lisboa, o Santo passou a ser o redactor dos Sermões de que estudei a retórica, a antropologia, a ética e o conceito de tempo. Acompanhei conferências e colóquios. Graças a isso até jantei à borla no Castelo de S. Jorge por convite do Presidente da República.
Nos anos seguintes o S. António já era diferente. Digamos que era uma festa onde se podia comer uma boa sardinha, com um pedaço de broa e um bom copo de vinho tinto. E o final da tarde era esplêndido. Depois de um dia de forte calor havia uma brisa que passava e refrescava os corpos, libertava os odores da natureza e a cidade tornava-se clamorosamente convidativa ao diálogo entre géneros. As raparigas tornavam-se ainda mais apelativas e os milagres do casamenteiro lá se iam dando.
Só no ano passado, a 21 de Outubro, no Doclisboa 2005, comecei a ver o outro lado das marchas. Foi incrível. A Culturgest transfigurou-se. Até aí circulavam nos tapetes vermelhos realizadores pretensiosos, intelectuais angustiados, senhoras finas e jovens forrados em roupas compradas em segunda mão. Tudo se alterou com a chegada do pessoal da Marcha da Bica. Aí sim, aquele edifício ficou preenchido com a alegria que a arquitectura merece. Tinham vindo ver o filme em que eram retratados: “Gosto de ti como és”.
O documentário de Sílvia Firmino é uma narrativa dos trabalhos e dos dias que são precisos para levar uma marcha à rua. Esses trabalhos duram meses, geram tensões e impõem obstáculos a ultrapassar. Há um objectivo a cumprir e tudo deve estar pronto a horas.
A exibição do filme criou um efeito de espelho. O pessoal da marcha da Bica estava ao mesmo tempo no ecrã e também numa pequena parte da sala a assistir. Quando o filme acabou tudo estava mudado. Também as senhoras finas, os realizadores pretensiosos, o ICAM e os intelectuais angustiados de esquerda se converteram. No final batiam palmas e rezavam para que a Bica ganhasse. E não é que eles ganharam mesmo! Bravo! A sala foi ao rubro. O sentimento de pertença à Marcha da Bica era tão grande como o que sente pela Selecção Nacional.

Hoje durante uma caminhada, depois de almoço, reencontrei a Marcha da Bica. As personagens do documentário estavam a trabalhar numa oficina, a preparar as marchas de 2006. Do tecto descia um grande pano com o lema da oficina: “Aqui trabucas”. E quem não quiser trabucar que não incomode.
O Sr. Fernando, o Patrão, estava a dar indicações à Sara, uma jovem de cerca de 20 anos, que recebia arames transportados pelo Diogo, um rapaz dos seus 19. A Sara dobrava e cortava os arames. Depois passavam para as mãos do Sr. Manuel Faustino, o especialista de serralharia, que meticulosamente os punha no sítio e soldava. Nas bancadas apareciam os arcos e as estruturas metálicas para a próxima marcha. O tema já o sei, mas é um segredo que jamais divulgarei.
Falei com o Sr. Fernando Duarte e também com o Sr. Américo Silva. O Sr. Fernando Duarte é uma espécie de produtor das marchas, o Presidente da Junta local e o Presidente da Assembleia-geral do Clube da Bica. Além de tudo isso, ainda trabalha na banca e viaja pela Europa em actividades sindicais. No filme é sempre visto com o telemóvel na mão. Na cabeça traz o centro de coordenação de toda aquela gente.
O Sr. Américo Silva é o artista da Marcha em si. Ensaiador experiente e rigoroso. É ele quem estabelece o ritmo. Se alguém desalinha ou desafina tem de se haver com ele. Porque aquilo não é para menos. No dia cada um tem de saber a música e a coreografia no coração, para que tudo corra pelo melhor.
Trabalhar com muitas pessoas em regime de voluntariado não é pêra doce. Vivemos em democracia e cada um tem direito à sua opinião. O Sr. Fernando e Sr. Américo sabem-no e não o escondem. Não foram poucas as vezes que se fecharam numa sala a discutir virilmente as suas diferenças de opinião. Porém, da discussão honesta e aberta sempre surgiram soluções e, sobretudo, amizade. Muita amizade.

No bairro ainda é possível ver miúdos a jogar à bola, idosos à janela e adultos ocupados com as lides diárias. Sente-se ali a presença de uma comunidade forte, uma espécie de ilha de humanidade no meio de uma cidade febril.

A sede é um lugar de encontro dos presentes, mas também de encontro com o passado. Nas paredes encontram-se os quadros pintados por antigos dirigentes da colectividade, assim como algumas obras de Arnaldo Ferreira, o “pintor da noite” que passeava por Lisboa com roupa de noivo. Há lá até mesmo um dos raros quadros que o pintor fez com cenas diurnas.

Artistas são também os que escrevem as letras e as músicas do cortejo. O já falecido Carlos Barrela foi vencedor de vários prémios. Entretanto, substituído por Tiago Torres Silva, mais conhecido por TTS, sucessor de Carlos Barrela na redacção da música, mas também na arrecadação de prémios e na admiração por Amália Rodrigues. Foi apresentado ao pessoal da Marcha pelo Nuno da Câmara Pereira, um admirador do bairro.
Quanto à Sílvia Firmino, a realizadora de "Gosto de ti como és", há a dizer que agora vive na Bica. Como a compreendo. É uma ilha no meio da cidade. Numa altura em que o país se transforma em dormitório é bom encontrar um local onde ainda há quem viva!
P.s.: Este ano vou torcer de novo pela Marcha da Bica. Que tudo corra bem!