sábado, março 11, 2006

Não me arrependo de nada


A partir da mulher que sou,
às vezes dá-me para contemplar
aquelas que eu poderia ter sido;
as mulheres primorosas,
diligentes, boas esposas,
modelo de virtudes,
que desejou minha mãe.
Não sei porquê
passei a vida inteira
a rebelar-me contra elas.
Odeio as suas ameaças no meu corpo.
A culpa que as suas vidas impecáveis,
por estranho malefício,
me inspiram.
Renego os seus bons ofícios,
os prantos às escondidas do marido,
o pudor da sua nudez
sob a roupa íntima passada a ferro e engomada.

Estas mulheres, no entanto,
olham-me dentro dos espelhos,
levantam o dedo acusador
e, às vezes, rendo-me aos seus olhares de reprimenda
e quero ganhar a aceitação universal,
ser a “boa menina”, a “mulher decente”
a Gioconda irrepreensível,
receber nota máxima em comportamento
do partido, do estado, dos amigos,
da minha família, dos meus filhos e de todos os restantes seres
que abundantes povoam este mundo nosso.

Nesta contradição inevitável
entre o que devia ter sido e o que é,
travei numerosas batalhas mortais,
batalhas de mordeduras delas contra mim
- elas habitando em mim, querendo ser eu.
Transgredindo maternos mandamentos,
arranco dorida e aos repelões
as mulheres internas
que, desde a infância, arregalam os olhos para mim
porque não caibo no molde perfeito dos seus sonhos,
porque me atrevo a ser esta louca, falível, terna e vulnerável,
que se enamora como alma penada
por causas justas, homens bonitos,
e palavras brincalhonas.

Porque, adulta, me atrevi a viver a infância proibida,
e fiz amor em cima de mesas de escritório
- no horário de trabalho -
e quebrei laços invioláveis
e me atrevi a gozar
o corpo saudável e sinuoso
com que os genes de todos os meus antepassados
me equiparam.

Não culpo ninguém. Antes lhes agradeço esses dons.
Não me arrependo de nada, como disse Edith Piaf.
Mas nos poços escuros em que me afundo,
quando, de manhã, ainda sem abrir os olhos,
sinto as lágrimas a assomar,
vejo essas outras mulheres à espera no vestíbulo,
brandindo condenações contra a minha felicidade.
Intrépidas meninas boas cercam-me
e dançam as suas canções infantis contra mim
contra esta mulher
feita e direita,
plena.
Esta mulher de peitos grandes
e ancas largas
que, por minha mãe e contra ela,
eu gosto de ser.


Apesar de não ser meu nem o poema, nem a foto, dedico o conjunto à Susana e a todas aquelas mulheres que se recusam a viver asfixiadas dentro dos moldes de gesso em que as querem “arrumar”. Ou seja, este poema é para mulheres e não para rapariguinhas.

Poema: Gioconda Belli - - Foto: Victor de Melo (Tubo de ensaio)

1 Comentários:

Anonymous Anónimo Escreveu...

"Carta

(digo dos que se ditam:
a minha defesa
são os vossos punhais)

Quando me disseram "não se vem à vida para sonhar" passei a odiar-vos. para vos matar escolhi materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das pequenas coisas: esta água vem de onde, quem teceu este linho, que mãos fizeram este pão?
Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas vozes que me habitavam silenciosamente. Entre mar e terra eu preferia ser espuma, ter raíz e poente entre oceano e continente.
O tempo, por vezes, morria de o não semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Eram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mãos de um corpo que ainda não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a água e nela me deixar tombar. Tecido que escapava da mais bela das lavadeiras eu ia pelo rio, a corrente insuflando-me e eu deixando-me arrastar com fingida contrariedade."

in Raíz de Orvalho e Outros Poemas
de Mia Couto.

...em nome da Mulher que somos, podemos ser, temos sido, de gerações de vida, agradeço o poema que está pleno de força, pleno de realidade também, e retribuo com uma "carta" do Mia Couto para ti, para aqueles que recomeçam sempre o outro dia da vida com a perspectiva genuína de que a vida tem realmente muito mais para oferecer, todos os dias diferente e renovada se deixarmos o nosso "olhar" se abeirar das coisas.

13/3/06 09:48  

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