sábado, abril 01, 2006

Biografias estilhaçadas


“A unidade da experiência, a comunicação de vozes e relatos de instauração de um horizonte de sentidos, tinha-se estilhaçado em mil pedaços. Não era essa a situação de outras épocas. Anteriormente: «Sabíamos muito bem o que era a experiência: os mais velhos tinham-na sempre passado aos mais novos. Em termos breves, com a autoridade da idade, em provérbios; prolixamente, com a loquacidade, em histórias; às vezes como uma narrativa de países estranhos, junto à lareira, perante filhos e netos. Mas onde ficou tudo isso? Quem encontra hoje gente capaz de contar histórias como deve ser?» (Benjamin, 1933,167). O desaparecimento do narrador resultava, indissociavelmente, da consolidação do monólogo interior como forma expressiva. O fluxo mental fragmentário e desconexo. A sobreposição de linguagem e silêncio.
“Segundo a fórmula cunhada posteriormente, os «relatos» tinham-se tornado inviáveis. Não existe narrador ou género de discurso capaz de dar ao homem de hoje um guião unitário da sua vida, um traçado homogéneo do seu papel no mundo.
“Tornámo-nos pobres. E esta pobreza da nossa experiência arrasta-nos irremediavelmente para uma percepção do tempo como angústia, do presente como encruzilhada.

José Jiménez, A vida como acaso; Trad. Manuel Agostinho, Vega, Lisboa, 1997, pp. 10-11.

Será mesmo assim? Foi alguma vez possível fazer um “guião unitário” ou reconhecer um “traçado homogéneo” do papel de alguém no mundo? E mesmo que isso se verifique, será verdade afirmar: “Tornámo-nos pobres”. Não nos teremos tornado mais ricos?
Foto: Geoffroy Demarquet